Compartilhar Escutas – S.I.M.


Compartilhar Escutas – S.I.M. 1

← Voltar para o início

Compartilhar Escutas – S.I.M. - 1

A cada encontro, partimos de uma gravação de áudio e trocamos textos e registros sobre ela.
Aqui estão os registros do encontro realizado dia 07 de abril de 2025, na sala do NuSom, às 14h.


Áudio 1

Me parece uma gravação que foi feita em um só lugar, em um restaurante à beira do mar com conversas entre amigos. Me passou paz e conforto.


Áudio 2

Cidade. Centro? Por mais que queiramos fugir da cidade, ela está ali. Soando, reverberando com seus ônibus, carros motos. Uma voz ao longe e quando começo a percebe-la, o áudio acaba. Quanto tempo mínimo é necessário para escutarmos uma gravação de campo? A percepção da imagem visual é imediata, ela está completamente dada ao olharmos para ela. A imagem sonora, não. Precisamos de um tempo maior para entendê-la.

Vou escutar novamente o áudio.

Alguém com uma bicicleta parada? Alguém fazendo o que? Há um som em primeiro plano de alguma coisa acontecendo. Alguém limpando algo? Isso seria uma caminhada sonora? Essa pessoa caminha. Acredito ser uma pessoa fazendo algo.

Ouço de novo. Tem bicicleta aí. Alguém deve tá consertando algo na bicicleta.

Mas por que alguém gravaria isso? Por que quero tanto saber a fonte desse som? Não se trata aqui de uma escuta reduzida, mas uma escuta curiosa, talvez obsessiva em agora saber o que é isso. Mas para minha escuta se tornar criativa, é isso: alguém consertando uma bicicleta em uma avenida, até tranquila, numa cidade grande.

O tilintar parece abrir um espaço aberto... Vozes ao fundo, pessoas conversando, alguma música, cachorros, uma rua, e a única constância é esse impulso em números múltiplos por 3. Ao longo da gravação, esses impulsos criam uma continuidade, que perpassa as buzinas, 1,2,3, o vento, 1,2,3 os comentários sobre alguém moscando, 1,2,3, os passos, 1,2,3, uma música, 1,2,3 até o corte seco, que deixa a sensação de saber mais sobre o espaço e as histórias.


Áudio 3

Se a escuta tem um contexto e a escrita também, nesse em especial essas qualidades contextuais tem uma urgência diferente. Assim, o contexto dessa escuta é que nessa escuta eu já sei quem fez esse áudio, diferente de um outro texto em que escrevi sobre a outra escuta. Vislumbro a pessoa enquanto escuto e também enquanto escrevo e mexo aqui e ali no que já escrevi. Assim, esse é um texto para que a escuta funcione como um movimento consciente de atenção e não deixemos mãos estendidas pelo caminho sem amparar. Se eu posso escolher, prefiro escutar sem fones de ouvido, a excessiva intimidade daqueles intra-auriculares me incomodam profundamente, principalmente nessa criação a partir da escuta de um colega, aparentemente preciso de espaço, não consigo escrever com obstrução. Começo a escrever após escutar duas vez, já tenho uma ideia do arco do texto, vamos lá: Em dois minutos e um segundo vislumbro uma imagem de movimento, uma contração do cotidiano da pessoa, andando pela cidade, sons de motores baforando e somos transportados para uma sala de música onde um piano toca uma valsa de Chopin, saímos dali para o trânsito do metrô, claramente nos localizamos no trajeto da linha azul da estação Vergueiro, mas aí penso, será que indo ou vindo? Depende, né? E um som de tilintar de chaves e fechadura abrindo, com vento ventando, que marca o fim do dia e também o fim do áudio. Walter Ruttmann, cem anos atrás, fez o Weekend, com sons de um fim de semana típico de Berlin daqueles dias. Já a pessoa que dividiu sua escuta nessa gravação, provavelmente me ofereceu um dia útil de sua rotina aqui em São Paulo. Provavelmente, né? Me pergunto se foi pausada a gravação e depois retomada. Será que entro no jogo macabro do “adivinha onde fui cortado”? Resisti após a terceira escuta.


Áudio 4

os murmúrios que ficam por de trás do trovão tem sempre algo a dizer. o trovão geralmente abafa outros sons, por poucos segundos que sejam, quando se faz presente. rouba a cena sonora, mata as outras nuances. como alguns pensamentos. e a chuva dissolve essa massa tensionada, esse imperialismo sonoro da trovoada. pode ser que leve junto os pensamentos mais rígidos também.
é muito difícil identificar os outros elementos sonoros que a chuva encobre.
esse trovão específico me lembra um dia de verão, mais ou menos em 2002, quando decidimos tomar banho de chuva no quintal. eu sempre tive medo do barulho alto, parecia que ia acabar com o mundo todinho. e ao mesmo tempo dava vontade de gritar mais alto do que ele (o trovão barulhento). já a chuva me acalmava. e as vozes escondidas nessas chuvas e trovões guardavam os segredos das famílias, dos amigos e dos amantes. de quem quis brincar na chuva.
esses murmúrios escondidos são o que fazem uma chuva ou trovoada se transformar na chuva ou trovoada que nunca esquecemos. ainda mais num lugar que chove tanto como aqui.
tendo medo ou paixão, ou os dois, todo mundo sabe o som que vem depois da trovoada. e o silêncio de quando a chuva para? será que é capturável? será que esse mesmo, tornaria os murmúrios em gritos, imediatamente, ao cessar a chuva?
na próxima vez que chover, tente escutar o silêncio do instante em que a chuva cessa.
é um silêncio agudo? áspero? cruel? falso? misterioso? cotidiano? comemorativo? ensurdecedor? pacífico? ruidoso? indeciso?


Áudio 5

O áudio traz sons do que parece ser uma criança ou um bebê na fase pré linguagem.
Gemidos de uma expressão incomoda do que parece não alcançar a realização da necessidade ou desejo manifestado. Alguns outros sons adjacentes que causam constragimento.
O áudio termina com a palavra “achou” sendo dita.


Áudio 6

Há como três planos justapostos, transpassando-se. Carros, e a constância intensa e amorfa da rua; pássaros e cigarras, em sua atividade também constante, ainda que intercalada, inter-cantada, transiente; em proximidade, eventos de uma cotidianidade caseira, pessoal, acidental.
O que sobrevém é o atravessamento ampliado e amplificado dos três planos, causando uma perspectiva auditiva irreal – como se escutássemos simultaneamente de três pontos distintos sobrepostos. Embaralhada a perspectivização dessa escuta, os sons se tornam ambíguos e em vias de se autonomizar: o que soa pertencente a um plano ganha um grau de incerteza ao cruzar-se com o que poderia ser caso pertencesse na verdade a outro, instabilizando identificações indiciais [algo quase-sino, quase-bonde].
Um avião surge e predomina sobre os outros sons; mas a ambiguidade na construção dessa escuta faz ouvir que, junto à massa ruidosa em crescendo do avião, manifesta-se também um material tônico-harmônico sustentado, quase-senoidal, cujo comportamento dinâmico acompanha a trajetória do avião, ou talvez não – no limiar entre vinculação e descolamento, apontando talvez para a possibilidade subterrânea de um plano outro.

Vamos ver a distância do que gostaria de escrever e o que consegui de fato. Como não fui muito diligente, não escutei rabiscando notas simultaneamente, preciso me fiar na memória. Aqui as impressões sem fones de ouvido, escuta mediada por caixas de som. No dia 29 de março, pela manhã, a primeira escuta do audio 7. Aqui a dúvida foi a sensação que me marcou, uma impressão muito forte de que já ouvi isso em algum lugar. Confirmada pela minha segunda escuta, no dia 31 de março, ali pela metade do audio eu me esqueci dele, pela segunda vez fui enganado pela sonoridade das manhãs dos Campos Elíseos e não percebi onde a gravação termina. Mas, nesta segunda vez comecei a tentar vislumbrar um diálogo de assimilação entre espécies ou mesmo o fim das fronteiras corporais, um perspectivismo ornitológico-veicular entre reinos animais e máquinas, entre o suposto som de pássaro e de uma provável sirene de segurança e um enredo onde o pássaro quer estacionar de ré e avisa de sua manobra e o caminhão quer levantar voo e demarcar território. Na noite do dia 1º de abril fiz mais uma escuta, e reforçando as memórias das escutas anteriores fiquei também mais à vontade com essa escuta. A cidade se impõe, há alguns indícios de um canteiro de obra, um bafo de atividade, um véu de som que se impõe na gravação, o caminhão que quer voar também precisa trabalhar e há, quem sabe, um descarrego de cargas no canteiro de obras. Novos atores entram na escuta, insetos, diria cigarras, mais ao fundo da paisagem sempre marcando sua presença (o pássaro sabe das coisas), há um motor de um veículo, que domina a ecologia e cala pelo ruído as outras atividades. Nesse ponto a ideia de pássaro ciborgue ganha intensidade. Mas eu também encontrei o ponto que acho que me desconcertou, ali por volta de 1:36, um som que me remete a uma sineta de trem e logo é articulado por uma sonoridade que arrisco ser resultado da traiçoeira atividade de interação da mão humana com um pacote de pão de forma. A cidade volta a soar, as cigarras se intensificam, há um quê de marulho tranquilo quando somos surpreendidos por mais um veículo, factualmente, ou uma escuta justicialista, diria que um avião em pouso toma a paisagem. Mas, quero terminar o texto acreditando que o caminhão voou e agora aterrissa.


Áudio 7

Um ruído intenso. Algo, que não sei identificar bem o que é, pontuam tempos quase musicais, em meio a uma massa sonora que me faz contorcer o rosto, talvez pelo susto do volume, talvez pela expressividade em bloco. Não me satisfaço com nenhuma proposta de reconhecimento de origem: é uma chuva? Uma rua? Uma máquina?
Sinto o corte na gravação, que recomeça com a mesma massa, mas dessa vez sem a tal da marcação (ou algo que o valha).
Incômodo é a melhor sensação para expressar o processo, assim como um fantasma de ruído que persiste em meu ouvido mesmo minutos após a audição.


Áudio 8

Me pego balançando a cadeira na qual estou sentada como se sob influencia da turbulencia da água. Assumo ser um movimento intencional na água para provocar som e dentro de um espaço confinado. O pensamento curioso sobre o contexto da gravação persiste, bem como o balançar da cadeira que cria outras possibilidades. De que tamanho eu seria para estar submergindo e emergindo nesse lugar? Me aproximo de algo que emite um som pulsante, pela última vez coloco a cabeça para fora da água e vejo o avião passar.


Áudio 9

Ouve-se no áudio um burburinho de pessoas conversando em um teatro, auditório ou espaço aberto enquanto, pelo que identifiquei, uma orquestra (oboé, trompete, flauta transversal, talvez trompa ou um violino...) e um baixo elétrico aquecem. O áudio me traz a alta expectativa de um concerto por vir. O aquecimento é o verdadeiro prelúdio do espetáculo.


Áudio 10

Escuta é um processo. Na primeira vez, foi quase como se eu estivesse num jogo, com vontade de desvendar alguma coisa, de descobrir uma charada. Algumas vozes, algumas palavras decididamente ditas em português, um ambiente de trabalho, talvez, um laboratório. Mais tranquilo na segunda, confesso que fui contaminado pela ideia de que se trata de um ambiente hospitalar. Os bips eletrônicos remetem diretamente ao pulso do paciente, à sua condição de vida; mas subjetivamente, a tensão que se instaura com a possibilidade de que os bips falhem, ou simplesmente parem... Essa tensão entre vida e morte está em outra relação que gosto muito, a de sinal e ruído. De que lado está a vida? Tenho certeza que é do segundo lado, o do ruído, mas, curiosamente, tentamos o tempo todo fingir que precisamos transformar tudo em sinal. Essa batalha não pode ser ganha: é mesmo só do ruído que pode emergir alguma coisa interessante, nova. Só existe potência e, portanto, vida, no ruído. O ambiente hospitalar remete exatamente a esse paradoxo em que que tudo é ruidoso e, ao mesmo, tempo asséptico. É o ruído limpo. Exatamente como num Ryoji Ikeda: ruido hospitalar. Tem um artista alemão, não lembro o nome, que fazia vídeos incríveis assim. Num deles tinha a imagem de uma mosca, morta, num zoom gigante, despencando no ar em câmera lenta, tudo filmado com uma resolução impressionante. Depois de uns instantes de queda ela finalmente se estatela no chão coberto por uma camada fina de poeira e detritos. No impacto, essa poeira sobe e “suja” toda a cena. A sensação não pode ser mais ambígua: todo ruído (a mosca, a poeira, os detritos) é higienizado pela hiperprodução videográfica (a altíssima resolução, a efeito da câmera lentíssima, o folley realizado com sons eletroacústicos extremamente polidos). Terceira escuta: Schaeffer estava certo: o loop é uma ferramenta poderosa de construção musical. A repetição cíclica esvaziou irremediavelmente toda a representação e toda referência: não há mais hospital, nem pessoas falando na sala. Ficou apenas o fluxo da música, a forma que cresce dos bips agudos iniciais para uma textura mais densa no final. Ficaram as tais “puras formas em movimento” (Hanslik, 1848, p. 54, in Vom Musikalisch-Schönen, kkk, mentira, estou citando de cabeça, até porque não leio em alemão). Agora que ouço acusmaticamente essa passagem do objeto sonoro, para o objeto musical, fico completamente incomodado com a ausência de um fade para decretar o final, ao invés do corte seco nos exatos 2’30”. Assim como o loop musicalizou a gravação, o corte me traz de volta para a realidade da gravação de campo, como acontece quando um filme acaba e as luzes do cinema se ascendem.


Áudio 11

Pot-pourri de músicas de gêneros variados. Uma caminhada entre os bares e festas no centro da cidade. Sons amplificados e reproduzidos por alto-falantes são captados, amplificados e reproduzidos outra vez. O movimento do microfone é como um dial de rádio, passeando entre diversas transmissões. Ouço a gravação em volume médio, mas consigo deduzir que a imagem sonora representa um volume bem mais alto. Tento distinguir quais dos sons não vêm de alto-falantes: pequenos fragmentos de vozes que passam pelo primeiro plano, um burburinho contínuo de pessoas conversando ao fundo. Não escuto a pessoa que caminha comigo.
Organizo duas seções em minha escuta: a primeira parte da gravação é formada por sobreposições e a segunda por transições entre músicas separadas. Na primeira parte, as músicas sobrepostas não decantam em camadas, mas formam uma massa compacta, difícil de separar. Minha escuta se agarra a um movimento melódico descendente em ritmo lento, repetido três vezes, que contrasta com o tempo animado das outras músicas. Quando nos afastamos dos alto-falantes, percebo com mais atenção o burburinho da vida noturna.
Entro agora no raio de propagação de uma banda com bateria e sanfona, e durante poucos compassos o microfone se alinha com uma das caixas de som, fazendo a música soar com maior nitidez. Mais adiante, passamos à distância de um beat eletrônico com graves intensos, recheado pelo burburinho indistinto dos ouvintes. Minha caminhada se encerra quando paramos para escutar uma homenagem a Jovelina Pérola Negra por um grupo de samba.


Participantes

Dora Naspolini; Herbert Baioco Vasconcelos; Júlio Corrêa Barros Silva; Marina Mapurunga; Mariana Suzuki; Gustavo Branco; Lucca Totti; Thayná Bonacorsi; Fernanda Vaidergonr; Laureana Stelmastchuk Benassi Fontolan e Fernando Iazzetta.